BECHOL LASHON Português – A natureza da oração
Nesta perashá o nome de Moshé nem sequer aparece, e é a única em que tal acontece, desde o Êxodo até o Deuteronómio. O lugar de honra é aqui ocupado por Aharon e seus filhos, os Cohanim.
Quero analisar uma controvérsia entre dois gigantes, Maimónides e Nahmânides, sobre qual é a natureza da oração no Judaísmo.
Sobre a obrigação de rezar, Maimónides escreve:
É preceito positivo [da Torá] o rezar todos os dias, conforme está escrito: “Servireis a H’ teu Deus…” – Ex 23:25. Ensina-nos a Tradição que este “servir” é “o serviço do coração” – ou seja, a oração. Nem a fórmula da oração nem a quantidade de orações a efectuar se encontram explicitadas na Torá. A Torá tampouco determina o tempo que se deverá dedicar à oração… O cumprimento deste preceito é assim: que todos os dias a pessoa [judia] reze e suplique, louve a Deus, e depois relate suas necessidades conforme o que precisa, por petição e súplica. (Mishneh Torah, Leis da Oração, 1: 1-2)
Maimónides considera a oração como um mandamento bíblico, embora os detalhes (texto, tempos etc.) tenham sido formulados pelos sábios.
– Nahmânides não concorda com Maimónides, nas suas críticas ao Sefer haMitzvot deste último, no que concerne ao 5.° mandamento positivo. Ele aponta para as muitas indicações na literatura que sugerem que a oração é apenas uma instituição rabínica. Ele diz que a oração na Bíblia é um privilégio e não uma obrigação, com a excepção das súplicas em momentos de desgraça. O serviço a D-us na Bíblia tem a forma de sacrifícios e não de oração.
Como é que temos que entender esta discrepância entre os dois? Uma passagem no Talmude nos ajudará:
“Foi afirmado: Rabi Yossé filho de Rabi Hanina disse: “As orações foram instituídas pelos patriarcas”. Rabi Yehoshua filho de Levy disse: “As orações foram instituídas para substituir os sacrifícios”… (Berakhot 26b)
A Suguiá (i. e., o trecho) continua explicando as afirmações – explicação que passo a resumir: Segundo Rabi Yossé, os patriarcas criaram precedentes para a oração: Abraham estabeleceu a oração matutina (“E Abraão levantou-se de madrugada, e foi ao lugar onde estivera em pé diante do Senhor” – Gen. 19:27); Isaac instituiu a oração vespertina (“E Isaac saiu para rezar no campo nas horas da tarde” – Ibid. 24:63); Jacob instituiu a oração nocturna quando teve a visão da escada, de noite (Ibid. 28). Na Suguiá em questão, os sábios citaram provas textuais para mostrar que cada uma das circunstâncias referidas foi uma ocasião para rezar.
Segundo Rabi Yehoshua, todavia, as orações correspondem aos sacrifícios diários: a oração matutina e vespertina representam as oferendas próprias de cada uma dessas fases do dia. A oração nocturna reflecte a completação do processo sacrificial – ou seja, a queimadura das peças sacrificadas, que continuava até o anoitecer.
Esta disputa recorda-nos que havia duas tradições espirituais na Torá: a sacerdotal e a profética. Estes eram papéis diferentes, ocupados por tipos diferentes de pessoas, envolvendo formas diferentes de consciência.
A oração profética da Bíblia é espontânea. Nasce da situação vivida num determinado momento. São os casos da oração de Abraham por Sodoma e Gomorra, da de Yaacob ao reencontrar-se com Essav, da de Moshe para que D-us perdoe os Israelitas depois do pecado do Bezerro, ou da de Haná para ter um filho: todas orações únicas.
Bem diferente era o serviço dos sacerdotes. Aqui o que era primário era o sacrifício e não as palavras (a maioria do serviço era silencioso). As acções dos sacerdotes eram precisas: cada desvio, como com os filhos de Aharon, era uma transgressão.
Rabi Yossé e Rabi Yehoshua não discordavam sobre os factos: os patriarcas rezavam e os sacerdotes ofereciam sacrifícios. A verdadeira questão era: a qual das duas tradições pertence a nossa oração?
Há uma outra passagem – desta vez, na Mishná – que nos sugere um desacordo parecido.
Raban Gamiliel diz que a cada oração uma pessoa tem que recitar as “dezoito bênçãos” (a forma original da Amidá). Rabi Yehoshua afirma, porém, que basta recitar uma forma abreviada das dezoito bênçãos. Rabi Eliezer, por sua vez, diz: Se alguém fizer da sua oração algo fixo (Kéba, em hebraico), a dita oração não poderá ser considerada genuína (Berakhot 4,4). Sábios posteriores, tanto no Talmude Babilónio como no de Jerusalém, discordam sobre o que Rabi Eliezer teria querido exactamente dizer. Alguns dizem que não se referia às palavras que dizemos mas à forma em que as dizemos: não deveríamos considerar a oração um jugo, ou dizê-la como se estivéssemos a ler uma carta. Outros sábios dizem que ele queria dizer que deveríamos formular uma nova oração em cada dia – ou, pelo menos, acrescentar algo às dezoito bênçãos. Este desacordo é sobre o papel, respectivamente, da estrutura e da espontaneidade, na oração.
Encontramos uma discussão semelhante na Mishná de Rosh haShaná sobre o papel da oração individual contra a oração comunitária. O anónimo (um rabino, na Mishná) diz que, assim como o oficiante (ShaliaH Ssibur) é obrigado (a recitar a oração), assim, também, cada individuo é a tal obrigado. Raban Gamiliel, todavia, acha que o oficiante isenta os indivíduos da sua obrigação (Mossíy idê Hobá) (Rosh HaShaná 4, 9).
Estes vários exemplos de desacordos são testemunho da opinião profundamente diferente sobre qual tradição de oração seja primária: se a sacerdotal, se a profética. Os sacerdotes ofereciam sacrifícios em nome de todo o povo; os seus actos eram comunitários e seguiam uma ordem precisa. Os patriarcas e os profetas rezavam espontaneamente, conforme a circunstância. Rabi Eliezer favorece a tradição profética, prescrevendo a cada indivíduo a oração. Raban Gamliel favorece a tradição sacerdotal.
Agora talvez entendamos o desacordo entre Maimónides e Nahmânides.
Para Maimónides, os patriarcas e os profetas falaram a D-us cada um da sua forma; e nós, com a oração, seguimos os seus passos. A alma da oração é a experiência profética do indivíduo em conversação com D-us.
Para Nahmânides, durante a Era Bíblica, a fundamental forma de serviço a D-us era a dos sacrifícios oferecidos pelos sacerdotes em nome do povo. Quando o Templo foi destruído, a oração substituiu os sacrifícios: a oração foi estabelecida pelos sábios em resposta à destruição. A oração é o serviço colectivo a D-us do Povo Judaico, uma continuação do padrão do Templo.
Agora podemos apreciar a excepcional síntese da tradição judaica: nós, com excepção de Arbit, rezamos a Amidá duas vezes: uma, silenciosa, individual; outra, em voz alta, comunitária. A primeira é profética; a segunda, sacerdotal. A oração judaica é a convergência destes dois modelos, exemplificados pelos dois irmãos: Moshé, o profeta, e Aharon, o sacerdote. Sem a tradição profética, não teríamos a espontaneidade; sem a tradição sacerdotal, não teríamos a continuidade.
A nossa perashá, que se concentra em Aharon e na qual o nome de Moshe não aparece, recorda-nos que a nossa herança deriva tanto de um como do outro. Moshé é o homem da História, dos eventos que a mudaram. O papel de Aharon representa a dimensão sacerdotal de serviço a D-us, o outro hemisfério da mente judaica, a voz da eternidade no meio do tempo.
*O rabino Eliezer di Martino é o rabino-chefe de Trieste.