BECHOL LASHON Português – Sacrifícios

DI MARTINOPor Eliezer Di Martino

As regras dos Korbanot, Sacrifícios, que dominam a maior parte do Humash de Vaikrá, Levitico, são uma das coisas mais difíceis de tratar, pois o Templo foi destruído há mais de 2000 anos portanto a pratica dos Korbanot extinguiu-se. Muitos comentaristas, especialmente os mais místicos, tentaram encontrar o sentido profundo dos Sacrifícios, para resgatar o espírito destes inclusive quando a sua pratica já não existia mais.

Um dos mais simples, todavia considerado um dos mais profundos, comentário foi dado por rabi Shneor Zalman de Ladi, ou seja o primeiro Rebe de Lubavitch. Ele notou uma peculiaridade gramatical na primeira parte da nossa Parashá:

Fala aos filhos de Israel e diz-lhes: Quando algum de vós oferecer oferta ao Senhor, oferecereis as vossas ofertas de animais (Behema), isto é, do gado (Bakar) e do rebanho (Tson). (Levitico 1, 2)

Esta tradução seria a forma na qual o versículo se leria se isto fosse escrito conforme às normais regras da gramática. Porém: “Em hebraico a sequência das palavras é esquisita, nós esperaríamos que dissesse: “Adam miquem qui iakriv”, ou seja “quando algum de vós oferecer…”. Invés o nosso versículo diz: “Adam qui iakriv miquem…”, ou seja, “ Quando oferecer …algum de vós…”. A essência do Korban, Sacrifício, é que oferecemos a nós próprios. Levamos a D-us as nossas faculdades, as nossas energias, os nossos pensamentos e as nossas emoções. A forma física do sacrifício, é apenas uma manifestação externa dum acto interior. O verdadeiro Korban, Sacrifício, é “Miquem”, “de vós”. Damos a D-us algo de nós. (Likuté Or, Vayikrá,Rabi Shenor Zalman de Ladi, Primeiro Rebe de Liubavitch)

Vamos agora a manter esta ideia do rebbe de Liubavitch e a continuá-la.
No sacrifício, o que é que damos a D-us? Os místicos judeus deram uma explicação ao comportamento humano definindo a existência de duas almas (o Rambam e seus seguidores não concordariam, mas outra vez vamos usar este conceito Kabalistico para os nossos interesses): “Nefesh Elohit”, a “Alma Divina” (ou melhor de origem Divina), e a “Nefesh Behemit” ou “Alma Animal”. Dum lado, somos serres físicos, somos parte da natureza, temos necessidades físicas, como comer, beber, reproduzirmo-nos, sobreviver. Nascemos, vivemos e morremos. Como Kohelet, o livro de Eclesiastes diz:

Pois o que sucede aos homens, isso mesmo também sucede aos animais; uma e a mesma coisa lhes sucede; como morre um, assim morre o outro; todos têm o mesmo fôlego; e o homem não tem vantagem sobre os animais; porque tudo é um mero sopro fugaz. (Eclesiastes 3, 19)

Todavia, não somos simples animais. Temos dentro de nós anseios imortais. Podemos falar, pensar, comunicar, Podemos, através dos actos de falar e ouvir, alcançar os outros. Somos os únicos seres que podem fazer a pergunta: “Porquê?”. Podemos formular ideias e seguir ideais. O Salmo 8 é um louvor a estas características:

“Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas que estabeleceste, que é o homem, para que te lembres dele? e o filho do homem, para que o visites? Contudo, pouco abaixo de Deus o fizeste; de glória e de honra o coroaste. Deste-lhe domínio sobre as obras das tuas mãos; tudo puseste debaixo de seus pés…” (Salmos 8, 3-6)

Fisicamente somos quase nada, mas espiritualmente temos uma Alma (de origem) Divina, uma faísca de eternidade.
A natureza do Korban, Sacrifício, do ponto de vista psicológico, é agora claro: aquilo que oferecemos a D-us, (não é apenas um animal mas) é toda a Nefesh HaBehemit, a nossa Alma Animal.

O nosso versículo usa três termos para definir os animais dos sacrifícios: “Behemá” simplesmente “Animal”, “Bakar” é gado e “Tson” que quer dizer rebanho. Cada uma representa uma característica animal da personalidade humana.

1)“Behema” representa o mesmo instinto animal. A palavra “Behema” geralmente refere.se aos animais domesticados, ou seja não implica necessariamente o instinto selvagem dos predadores. Refere-se a algo mais manso. Os animais passam o próprio tempo á procura de comida, suas vidas são vinculadas à luta para a sobrevivência, portanto sacrificar o “animal”/”Behema”, que está dentro de nós quer dizer sermos guiados por algo mais do que a mera sobrevivência.

2)A segunda palavra, “Bakar”, Gado, em hebraico nos faz lembrar e tem a mesma raiz da palavra Boker, Manhã, ou literalmente “Abrir caminho”, como os primeiros raios de sol se abrem o caminho na escuridão da noite. O gado a não ser forçado com barreiras e cercos, não tem nenhum respeito para os limites e as fronteiras. Sacrificar o “Bakar”, Gado, que está em nós, quer dizer apreender a reconhecer e respeitar os limites: sacro e profano, certo e errado, permitido e proibido. As barreiras da mente podem as vezes serem mais fortes do que muros.

3) “Tson, rebanho, representa exactamente o instinto gregário, ou seja de ir a trás daquilo que os outros (ou a maioria) fazem. As grandes figuras do judaísmo, Abraham, Moisés, os profetas, foram caracterizadas exactamente por estarem fora do rebanho: ser diferentes, lutar os ídolos da época, recusar de capitular ás modas intelectuais do momento. Isto é o verdadeiro sentido de Kadosh em hebraico, ser separados, distintos. Sabemos da nossas obstinação a assimilarmo-nos à cultura dominante ou convertermo-nos à religião dominante.

O termo Korban, Sacrifício, e o verbo Lehakriv, Sacrificar, significam literalmente, respectivamente “aquilo que foi aproximado” e “fazer aproximar”. A peculiaridade é que a etimologia desta palavra, não é aquilo que classicamente é atribuído à palavra sacrifício ou seja desistir de algo, mas refere-se à aproximar algo a D-us. (Notem que em latino a palavra Sacrificium é uma palavra composta de Sacer e Facere, ou seja “tornar sacro”).
Quero dar uma definição moderna de Korban então: Lehakriv quer dizer levar o elemento animal da nossa alma para ser transformando, tornado, através do fogo Divino que no antepassado queimava no altar do Templo, e que todavia queima no coração do substituto do Korban, a tefilá, a oração, se verdadeiramente procuramos proximidade com D-us.

Varias teorias, o darwinismo, o materialismo científico e outros, chegaram à conclusão que o ser humano é um animal, nada menos nada mais. Nos partilhamos o 98% dos nossos genes com os primatas, os símios. Somos, os “Macacos Nus”, a existência do Homo Sapiens foi uma pura coincidência, o resultado de mutações casuais que por acaso chegaram á forma mais apta para a sobrevivência. A Nefesh HaBehemit, a alma animal, é tudo aquilo que somos.

A refutação desta ideia está naquilo que quisemos dizer, no acto de auto sacrifício. Podemos redireccionar os nossos instintos animais, Podemos transcender a mera sobrevivência, podemos honrar os limites. Podemos transcender a Behema, Bakar e Tson. Nenhum animal é capaz de auto transformar-se, mas nós sim. A poesia, a Filosofia, etc. são coisas que não têm um mero valor de sobrevivência mas que fazem parte do nosso mais profundo ser. Isto nos diz que não somos apenas animais. Levando aquilo que é animal dentro de nós, próximo de D-us, submergimos o material no espiritual, assim transformando-nos em algo novo, em seres livres da escravidão da natureza e servos do D-us Vivo.

*O rabino Eliezer di Martino é o rabino-chefe de Trieste.