BECHOL LASHON Português – Uma formação criativa

DI MARTINOpor Eliezer Di Martino*

A parashá de Behaalotechá fala das trompetas de prata D-us mandou Moshe construir .
D-us falou a Moshé dizendo: “Disse mais o Senhor a Moisés: Faz-te duas trombetas de prata; de obra batida as farás, e elas te servirão para convocares a congregação (Edá), e para ordenares a partida dos acampamentos (MaHanôt)”. (Números 10: 1-2)
Essa passagem aparentemente simples, tornou-se numa base para uma das mais profundas meditações do Grande Rabino Solovetchik, que tratava do “sofrimento no judaísmo”.
Ele diz que estas são duas formas com as quais pessoas se tornam num grupo.

Quando enfrentam um inimigo comum, as pessoas juntam-se por proteção mútua, sabendo que só assim, poderão sobreviver. Este fenómeno não é peculiar só do Homo Sapiens, mas também os animais juntam-se para defender-se dos predadores. Estes grupos são MaHanôt, acampamentos, formações de defensa.
Vendo o mesmo raciocínio sobre outro ponto de vista, observamos que as pessoas podem se juntar porque têm visões, aspirações e ideais comuns. Este conceito é a Edá, a Congregação. A etimologia da palavra Edá vem de Ed, que quer dizer testemunho.

Edôt são as leis que ligam -se aos crenças judaicos, como o Shabat que testemunha a Criação, Pessach a saída do Egipto etc. Uma Edá não é uma formação defensiva mas sim criativa. As pessoas juntam-se para alcançar algo, pois se estivessem sós, não poderiam alcançar. Uma sociedade construída em torno dum projecto partilhado, procurando o bem comum, não é uma MaHané, mas sim uma Edá: não um acampamento – mas sim uma congregação.
Estas são, diz Rav Soleveitchik, as duas formas de viver e relacionar-se com o mundo. Um MaHané/acampamento nasce a causa de algo que lhe acontece desde o exterior, enquanto uma Edá/Congregação começa desde um desejo interno. O primeiro é passivo e o segundo activo. O primeiro é uma resposta a aquilo que aconteceu ao grupo no passado, e já o segundo procura alcançar algo no futuro. Enquanto os acampamentos existem também no mundo animal em forma de matilhas, as congregações são exclusivas do mundo humano, vindo das habilidades humanas de falar, pensar, comunicar e colaborar.

Os judeus são um povo nessas duas definições. Nossos antepassados foram um MaHané/acampamento no Egipto, forjado pela escravidão e sofrimento. Eram diferentes, não eram Egípcios, mas sim Hebreus, uma palavra que provavelmente quer dizer “Aqueles do outro lado”, ou “Outsiders”. Desde sempre os judeus sabem que foram as circunstâncias que os juntaram. Partilhamos uma história que, demasiadas vezes, foi escrita com lágrimas. Rav Soloveitchik chama isso de Berit Goral, a Aliança do Destino. Isso não é meramente um fenómeno negativo. Isso faz nascer um forte sentido de que somos parte da mesma história, e o que temos em comum é mais forte daquilo que nos separa.
O nosso destino não faz diferença entre aristocráticos e pessoas comuns, entre pobre e rico, entre o príncipe e o homeless a pedir esmola na rua, entre o religioso e o assimilado. Também se falamos línguas diferentes, também se moramos em diferentes países, ainda partilhamos o mesmo destino. Se o judeu comum fora do castelo é espancado, também o judeu no castelo real está em perigo, conforme diz a Meguilat Ester: “Não imagines que, por estares no palácio do rei, terás mais sorte para escapar do que todos os outros judeus” (Ester 4,13)
Isso nos leva a entender o sentido de sofrimento partilhado. Choramos juntos e celebramos juntos. Isto tudo leva a um sentido de Responsabilidade Partilhada, conforme diz o ditado: “Todo Israel é responsável um para o outro”. E isto leva a Acção Colectiva no campo do bem-estar, caridade e bondade.

Maimonides diz:
“Todos os Israelitas e aqueles que agregaram-se-lhes, são, entre eles, como irmãos, conforme foi dito: “Filhos sois do Senhor vosso Deus…” (Deuteronómio 14-1). Se um irmão não demonstra compaixão para seu irmão, quem então o fará? A quem deverão dirigir-se então os pobres de Israel? Aos estrangeiros que os odeiam e perseguem? Seus pedidos então dirigir-se-ão aos seus irmãos” (Hilkhôt Matanôt LaAniym 10-2)

Todas essas são dimensões da Aliança do Destino – Berit Goral, nascida da experiência da escravidão no Egipto. Mas há um ulterior elemento da Identidade Judaica que o Rav Soloveitchik chama Berit Yeud – a Aliança da Designação, nascida no Monte Sinai. Isto define o Povo de Israel, não como um objecto de persecuções, mas como o sujeito duma única vocação, ou seja, tornar-se “Um reino de sacerdotes e uma nação santa”
Sob esta Aliança, o Povo de Israel, é definido – e não por aquilo que outros lhe fazem, mas pelo legado que recebeu, o papel que escolheu ter na historia.
Os Israelitas não escolheram ser escravos no Egipto, este destino lhes foi imposto por outra entidade.
Pelo contrário, escolheram tornar-se o Povo de D-us, aceitando a Torá e dizendo: “Naassé veNishmá” Faremos e Entenderemos.
A Designação, a vocação, criam uma Edá/Congregação e não uma MaHané/Acampamento.
Ninguém definiu o objectivo de Israel de forma mais nobre e completa, que o profeta Isaías, que disse em nome de D-us:

“Vós sois as minhas testemunhas (Edai), do Senhor, e o meu servo, a quem escolhi; para que o saibais, e me creiais e entendais que eu sou o mesmo; antes de mim D-us nenhum se formou, e depois de mim nenhum haverá.
Eu, eu sou o Senhor, e fora de mim não há salvador.
Eu anunciei, e eu salvei, e eu o mostrei; e deus estranho não houve entre vós; portanto vós sois as minhas testemunhas (Edai), diz o Senhor.” (Isaías 43, 10-12)

A palavra Edai / Minhas Testemunhas, tem a mesma raiz de Edá / Congregação. O nosso objetivo como Pessoas pertencentes a Aliança da Designação, é ser testemunhas da presença de D-us, através da forma com a qual conduzimos a nossa vida, a Torá, e com o caminho no qual avançamos como povo, a nossa história.
Os eventos do século passado, perseguições, pogroms, o aumentar da judeofobia e o Holocausto, seguido pelo nascimento do Estado de Israel e a luta constante na qual se encontra para sobreviver ao terrorismo, influíram imensamente a reforçar o Berit Goral, Aliança do Destino, que ainda continua a unir os judeus contra as hostilidades do mundo. Nos somos e ficamos uma MaHané, um acampamento.
Mas não somos mais uma Edá, Congregação. Pelo contrário, nos estamos divididos e fracturados em várias Edot, Congregações, ortodoxos, reformistas, religiosos, laicos, e muitas outras subdivisões que continuam a “atomizar” a vida judaica em setas não comunicantes e sub culturas.

As palavras da nossa Parashá ainda têm um desafio: “Disse mais o Senhor a Moisés. Faz-te duas trombetas de prata; de obra batida as farás, e elas te servirão para convocares a congregação (Edá), e para ordenares a partida dos acampamentos (Machanôt)” (Números10:1/2)

A nossa identidade de Judeus não é apenas uma acampamento, mas também uma congregação. Por isso temos de recuperar a nossa visão de o que é ser as testemunhas de D-us na terra.

*O rabino Eliezer di Martino é o rabino-chefe de Trieste.