BECHOL LASHON Português – Reabilitação

DI MARTINOpor Eliezer Di Martino*

A Perachá Qui Tetsê mostra-nos a humanidade da lei judaica. Começaremos tomando o seguinte versículo:

1) -Se houver contenda entre alguns, e vierem a juízo para serem julgados, justificar-se-á ao inocente, e ao culpado condenar-se-á.
-E se o culpado merecer açoites, o juiz fará que ele se deite e seja açoitado na sua presença, de acordo com a gravidade da sua culpa.
-Até quarenta açoites lhe poderá dar, não mais; para que, porventura, se lhe der mais açoites do que estes, teu irmão não fique envilecido aos teus olhos.
(Deuteronômio 25, 1-3)

Nós concentrar-nos-emos na última frase: “Teu irmão não fique envilecido aos teus olhos”

Os sábios do Talmude entenderam desta passagem um princípio fundamental, ou seja a reabilitação dum culpado quando tiver subido a sua pena. Na primeira parte a pessoa é chamada de “culpado”, mas em hebraico é usada a palavra Rachá, Malvado, mas ao fim do versículo já é chamado de “teu irmão”. Daqui os sábios perceberam que “uma vês que tinha sofrido a sua pena, o malvado volta a ter o estatuto de “irmão”, com todo o que isto implica.

Por exemplo, ele pode ser testemunha, e a sua palavra não será invalidada pelo facto que em precedência foi encontrado culpado duma transgressão qualquer: a mancha sobre ele é temporária, ou seja os transgressores devem ser reabilitados.

Isto levou a uma regra especial estabelecida pelos sábios que foi chamada de “Takant HaChabim”, ou seja a regra que remove os obstáculos à penitência. A Michná nos ensina o seguinte:

2)“Se uma coluna (de madeira) que foi adquirida roubando, foi usada para construir um edifício, o culpado deverá reembolsar em dinheiro (e não restituindo a mesma coluna), assim não serão feitos obstáculos ao penitente” (Michná Guitin 5-5)

Geralmente a regra é conforme foi dito:

3) “. E deverá devolver aquilo que roubou…” (Levitico, 5, 23)

Isto faz sentido porque se a Torá permitisse reembolsar simplesmente o valor monetário do objecto roubado, isso permitiria adquirir coisas roubando-as, usando a violência, e depois simplesmente pagar o valor!

Todavia, nos casos nos quais a restituição do objecto roubado criaria uma grande perda e um trabalho exagerado, a Torá permite o reembolso do valor monetário, porque o culpado, inclusive tendo-se arrependido considerando a grande perda que comportaria a restituição, mudaria de ideia não querendo mais restituir o objecto, como no caso da nossa Michná.

O que podemos dizer? Deveria ser o direito do inocente a ser defendido e não o do culpado! E até o culpado, transgredindo a lei não deveria receber a misericórdia do juiz. Mas a Lei judaica acha diferente: certamente a vítima deve ser reembolsada, mas temos que pensar também no culpado, no sentido que temos que dar-lhe a possibilidade de tornar-se de transgressor em cumpridor da lei.

Mas, olhem! Os sábios continuaram nesta direcção formulando uma outra Halakhá:

4) “Se uns ladrões ou usurários (arrependem-se e de própria iniciativa) decidem recuperar o dano que infligiram, não é justo aceitar o reembolso que eles pretendem dar, e quem aceita não está a agir conforme a lei dos sábios” (Talmude tratado Baba Kama 94b)

Esta lei nasce duma situação acontecida no fim do terceiro século, um ladrão decidiu de deixar a vida criminal e restituir todo aquilo que tinha roubado. Assim que a sua mulher disse-lhe, Idiota! Assim não ficarias nem sequer com o cinto que estas a vestir! Então foi instituída a lei pela qual os roubados não deveriam insistir para a restituição da sua posse.

Claro que esta lei não se aplica a um ladrão que foi levado em frente a um tribunal, mas só a quem se arrependeria espontaneamente. Esta lei foi amplamente contestada, mas todavia o Maimonides conclui codificando a lei da forma seguinte:

5) “Inclusive se roubar a alguém é como tomar-lhe a vida…..todavia, devemos ajudar (o ladrão que se arrependeu espontaneamente) e perdoá-lo para levá-lo de volta ao justo caminho” (Michné Torá, Hilkhot Guezelá 1, 13)

Outro principio articulado pelos sábios em base a um preceito bíblico, foi que uma pessoa não deve nunca recordar a um penitente, o seu passado de transgressor. Isto seria considerado uma “opressão verbal”, conforme foi proibido no versículo:

6) “Nenhum de vós oprimirá ao seu próximo; mas temerás o teu Deus; porque eu sou o Senhor vosso Deus.” (Lev. 25, 17)

As leis da reabilitação são complexas e eu não pretendo resumi-la nesta ocasião, mas a ideia é clara, os sábios de Israel, desde a antiguidade, quiseram equilibrar o desejo de fazer justiça com a ajuda para os transgressores que quisessem voltar à sociedade e honestidade. Os nossos sábios provavelmente apreenderam esta atitude do profeta Ezequiel:

7) Tu, pois, filho do homem, dize à casa de Israel: Assim falais vós, dizendo: Visto que as nossas transgressões e os nossos pecados estão sobre nós, e nós definhamos neles, como viveremos então?
Dize-lhes: Vivo eu, diz o Senhor Deus, que não tenho prazer na morte do ímpio, mas sim em que o ímpio se converta do seu caminho, e viva. Convertei-vos, convertei-vos dos vossos maus caminhos; pois, por que morrereis, ó casa de Israel?
(Ezequiel 33, 10-11)

Outra vês as leis judaicas anteciparam de milénios as sociedades modernas. A Justiça Retributiva não é necessariamente incompatível com a dignidade humana e a liberdade. Pelo contrário, é baseada sobre eles! A Lei Judaica não se preocupa apenas com aqueles que foram atingidos, mas também em recuperar aqueles transgressores que querem reconstruir o próprio futuro. A “Culpa” no judaísmo é das acções, não dos homens, e consequentemente é o acto não a pessoa que é condenado. Quando o criminal serve a sua punição e se arrepende, volta a ser “teu irmão”.

*O rabino Eliezer di Martino é o rabino de Trieste.