BECHOL LASHON Português – Carácter

DI MARTINOpor Eliezer Di Martino*

“Fala a toda a congregação dos filhos de Israel, e diz-lhes: Sereis santos, porque Eu, o Senhor Vosso D-us, sou Santo.” (Levitico 19)
No seu comentário ao primeiro versículo da nossa Parashá, Ramban NaHmanides, faz uma importante observação:
“A Torá nos avisou de estar cuidados com a imoralidade e alimentos proibidos, mas ao mesmo tempo permite as relações maritais entre marido e mulher e a consumpção de certos alimentos. Sendo isto assim, uma pessoa poderia achar que seja permitido ser apaixonadamente adicto às relações maritais com a própria mulher, ou muitas mulheres, ou ser “…entre os beberrões de vinho…os comilões de carne (Provérbios, 23,20) ” ou falar livremente de qualquer profanidade, pois isso não está explicitamente proibido. O resultado seria que esta pessoa tornar-se-ia numa canalha na esfera daquilo que é permitido conforme à Torá (em hebraico Naval biRshut HaTorá). Portanto depois de ter elencado cada especifico comportamento proibido, a Torá, nos dá uma regra geral que nos diz de sermos moderados também na esfera daquilo que seria permitido pela Torá” (Ramban, comentário à Torá, Levitico…)

Rambanm continua explicando que esta é uma característica comum na Torá: exemplos detalhados seguidos por uma regra geral. Portanto no caso da ética, a Torá proíbe explicitamente alguns tipos de comportamento, mas inclui também algumas regras gerais como “…praticarás o que é recto e bom… (Deut. 6:18)” que quer dizer ir além daquilo que a lei explicitamente pede.
O Rambam, desta vez, Maimondes, chega á mesma conclusão mas duma fonte diferente:
“…O Senhor te confirmará para si por povo santo, como te jurou, se guardares os mandamentos do Senhor teu D-us e andares nos Seus caminhos… (Deut. 28: 9) ”

Disto ele chegou a codificar no seu Mishné Torá, Hilchot Deot, as leis de carácter ético, que somos obrigados a desenvolver características comportamentais tais como sermos gentis, misericordiosos e santos pois D-us é Gentil, Misericordioso e Santo. Assim também explica o filho do Rambam, Rabi Avraham, que o judaísmo além de prescrever ou proibir acções específicas, nos requer de desenvolver certas virtudes, o que o grande pensador político e historiador francês Alexis de Toqueville chamava “os hábitos do coração”. A Torá interessa-se não só do comportamento mas também do carácter, não só aquilo que fazemos mas também, e talvez principalmente, com o tipo de pessoa na qual nos tornamos.

Esta ideia é fundamental: tecnicamente falando, Ramban e Rambam, se opõem a duas correntes na relação com a Halachá, a lei judaica: o “redutivismo” e o “positivismo” Halachico.
O “redutivismo” Halachico é a ideia que diz que o judaísmo é só halachá: a crença, que se cumpri mos tudo aquilo que está escrito no SHulhan Aruch (compendio halachico), já fizemos tudo aquilo que nos é requerido. Não há nada mais além disso, só um número de regras, uma coreografia de comportamento.
O “positivismo “ Halachico é a ideia que a Halachá, lei judaica, é um sistema suficiente sem uma específica lógica, a não ser a mera obediência a D-us. Não tem nenhum outro objectivo, nenhum fundamento racional ou pelo menos nenhum que nós podemos perceber.
Ramban e Rambam acreditavam no contrário. Eles achavam que existem assuntos de profunda importância religiosa por trás da mera legislação. Estes não podem ser expressados através de regras exactas porque a vida não obedece a regras exactas.
O Ramban é como se estivesse a dizer: “Podem cumprir todas as regras da Kasherut, e ao mesmo tempo ser comilões! Podem beber só vinho Kasher e ao mesmo tempo ser beberrões! Podem cumprir as leis da pureza familiar e ao mesmo tempo ser luxuriosos! Ou em termos que nos tocam, podem conhecer todos os Minhaguim e ao mesmo tempo ser pessoas imorais! Ele chama este tipo de pessos “Navalo BiRshut HaTorá” um desgraçado que justifica a sua conduta dizendo que ele é um rigoroso cumpridor dos preceitos, um “religioso”! Da mesma forma rambam, Maimonides, achava que não se podia ser um judeu observante e ao mesmo tempo ser arrogante, sem tacto, sem misericórdia, tendente ao orgulho e à raiva. Ambos acreditavam que estes tipos de pessoas falharam profundamente no entendimento do judaísmo.

A mesma lei indica algo além da mera lei. Ramban localizou isso no preceito “…sereis santos…”, Rambam no preceito “… andar nos caminhos de D-us”. De qualquer forma ambos sabiam que existe uma dimensão da moral que não pode ser expressada pela mera legislação, que não podemos apreender dum livro de regras mas só do exemplo e experiencia.

O Talmude diz que “Rabi Akiva seguia sempre Rabi Yeoshua para apreender do seu comportamento” (Berachot 62a) e também fala dos “Estúpidos judeus babilónios que se levantavam em frente dum Sefer Torá e não em frente dum grande ser humano” (Macot 22b). Podemos apreender lei dum livro, mas apreendemos virtudes estando com grandes pessoas e vendo o seu comportamento.
O judaísmo não é só lei. Por isso a mesma Torá não contem apenas mandamentos mas também narrativas, assim como a literatura talmúdica não contém apenas Halachá mas também Hagadá: historias e especulações que ensinam ética. Assim também o judaísmo medieval não produziu apenas compêndios Halachicos mas também tratados éticos.
Ser santo, para NaHamnides, e andar nos caminhos de D-us, para Maimonides, quer dizer passar por um longo processo de formação do carácter e crescimento moral. Neste sentido a ética é como a arte: existem regras para compor um poema, mas seguir estas regras não te torna num Shakespeare. A Halachá, a lei judaica, define os parâmetros básicos da vida judaica, mas é dentro destes parâmetros que começa a busca pela sabedoria moral. A Halachá é uma condição necessária mas não suficiente para uma vida em procura do ideal.
Existem pessoas que têm sucesso, são potentes e ricas, mas há outras também que são Santas, pessoas diferentes, conscientes da presença de D-us, e reparamos isso no seu comportamento ou em como ser relacionam com os outros. Estas pessoas parecem indicar algo além. Este algo, disseram o Maimonides e o Nahamnides, é o grande desafio das simples palavras que abrem a nossa Parashá: “Sereis Santos”. Ser santos não se demonstra só naquilo que fazemos mas também e sobretudo no tipo de pessoas nas quais nos tornamos.

*O rabino Eliezer di Martino é o rabino-chefe de Trieste