BECHOL LASHON – PORTOGUES Irmãos

DI MARTINOPor Eliezer Di Martino*

Rebeca em princípio estéril, ficou finalmente grávida. Sofrendo muito ela “foi a consultar o Senhor”. A explicação que recebeu foi que os dois gémeos estavam a lutar no seu ventre, e que eram destinados a continuar esta luta no futuro:
“…Duas nações há no teu ventre, e dois povos se dividirão das tuas entranhas, e um povo será mais forte do que o outro povo, e o mais velho servirá ao mais novo.” (Génesis 25, 23)
Em seguida os gémeos nascem, primeiro Esaú e depois, apanhando o calcanhar do irmão, Jacob. Consciente da promessa que lhe foi feita, Rebeca favorece o mais novo, Jacob. Anos depois, ela persuade o Jacob a vestir a rouba do irmão e a receber a bênção que o pai Isaac, quis dar em principio ao irmão Esaú. Um versículo daquela bênção diz :
“…sirvam-te povos, e nações se encurvem a ti; sê senhor de teus irmãos, e os filhos da tua mãe se encurvem a ti; sejam malditos os que te amaldiçoarem, e benditos sejam os que te abençoarem.” (Ibid. 27, 29)
A previsão cumpriu-se, a bênção de Isaac com certeza nos confirma aquilo que foi dito a Rebeca antes do nascimento dos dois filhos, ou seja que o mais velho servirá ao mais novo. A história parece ter chegado ao fim, mas a narrativa bíblica não é sempre aquilo que parece.
Dois eventos seguem que mudam todo aquilo que nos esperávamos. O primeiro é quando Esaú chega e descobre que Jacob o enganou e tomou a sua bênção. Influenciado pela desesperação, Isaac dá uma bênção também a Esaí que diz o seguinte:
“…pela tua espada viverás, e a teu irmão, serviras; mas quando te tornares impaciente, então sacudirás o seu jugo do teu pescoço.” (Ibid. 27, 40)
Isto não é aquilo que temos antecipado, parece que o mais velho não servirá o mais novo perpetuamente.
A mesma cena acontece anos depois quando os irmãos se reencontram depois de um longo período de afastamento. Jacob é terrificado a pensar ao encontro, sendo que Esaú tinha jurado matá-lo. Só depois duma comprida preparação, Jacob consegue enfrentar Esaú. Ele se prostra sete vezes, chama o seu irmão de “Meu senhor” sete vezes e cinco vezes refere-se a si mesmo como de “Teu servo”. Parece que os papéis inverteram-se. Esaú não se torna o servo de Jacob, mas sim, Jacob fala de si como servo de Esaú. Mas isto não pode ser! É o exacto contrário daquilo que foi dito a Rebeca.
Temos aqui, um dos mais interessantes conceitos que a Torá nos transmite: o poder do futuro, de mudar o nosso entendimento do passado. Esta é a essência do Midrash, ou seja, novas perspectivas, revelam retrospectivamente novos sentidos no texto. O presente nunca é completamente determinado pelo mesmo presente. As vezes é só “depois” que percebemos o “agora”.
Isto é um dos sentidos da grande profecia que teve Moshe em Êxodo 33, 23, quando D-us diz:
“Depois, quando eu tirar a mão, me verás pelas costas; porém a minha face não se verá.” (Êxodo 33, 23)
Ou seja que a Sua presença pode ser percebida só quando olhamos para o passado, nunca pode ser conhecida o predita antes. A indeterminação de significado a cada momento, é aquilo que dá a Torá a sua abertura e perpetua interpretação. ~
Nós agora vemos que este não é um conceito introduzido pelos sábios mas que já existia na Torá: às palavras que Rebeca ouviu, como agora será mais claro, pareciam querer dizer algo naquela altura, mas com o tempo percebemos que queriam dizer algo diferente.
Às palavras “VeRav Iaavod Tsair”, traduzido por “o mais velho servirá o mais novo”, voltando a elas após vários eventos, revelam ser tudo menos claras, incluem varias ambiguidades.
וְרַב יַעֲבֹד צָעִיר
1) A primeira das quais é que falta o Et, que indica o objecto do verbo. Logo, geralmente no hebraico bíblico, o sujeito precede e o objecto segue o verbo, mas não sempre. Como em Job:
יט אֲבָנִים, שָׁחֲקוּ מַיִם– תִּשְׁטֹף-סְפִיחֶיהָ עֲפַר-אָרֶץ;
וְתִקְוַת אֱנוֹשׁ הֶאֱבַדְתָּ. 19 As águas gastam as pedras; as enchentes arrebatam o solo; assim tu fazes perecer a esperança do homem. (Job 14, 19)
“…as águas gastam as pedras…” e não “…as pedras gastam as águas…”
Então a nossa frase pode querer dizer, “…o mais velho servirá o mais novo…”, ou “…o mais novo servirá o mais velho…”. Assim seria hebraico poético e não uma prosa convencional, mas é exactamente aquilo que esta parte é, um poema.
2) A segunda é que a palavra Rav não é o oposto de Tsair, que são traduzidas como Rav = mais velho e Tsair = mais novo. O contrário de Tsair é Bachir, que quer dizer mais velho o primogénito, quando rav não quer dizer mais velho mas Grande ou no máximo Chefe. Este considerar os dois termos como exactos opostos, coisa que não é certa, desestabiliza ainda mais o sentido. Quem era o Rav? O mais velho? O líder? O chefe? O mais numeroso?
Um episódio póstumo acrescenta um outro elemento retrospectivo à dúvida: há um outro nascimento de gémeos que faz lembrar o de Jacov e Esau, e é o episódio de Tamar:
Sucedeu que, ao tempo de ela dar à luz, havia gémeos em seu ventre; E dando ela à luz, um pôs fora a mão, e a parteira tomou um fio encarnado e o atou em sua mão, dizendo: Este saiu primeiro. Mas recolheu ele a mão, e eis que seu irmão saiu; pelo que ela disse: Como tens tu rompido! Portanto foi chamado Pérez. Depois saiu o seu irmão, em cuja mão estava o fio encarnado; e foi chamado ZeráH. (Génesis 38, 27-30)
Então que dos dois era o mais velho? E o que é que implica isso com o assunto do Jacob e Esaú? Estas ambiguidades não são acidentais mas fazem parte integrante do texto. São tão subtis que é difícil notá-las. Só depois quando a narrativa não se desenvolve da forma que esperávamos, somos forçados a voltar a trás e reconsiderar o texto o qual não é clar, as palavras que Rebeca ouviu, podem querer dizer uma coisa ou o exacto oposto: “O mais velho servirá o mais novo” ou “O mais novo servirá o mais velho”.
Depois de estas duvidas todas, varias coisas são mais claras:
A primeira e menos importante para nós agora, é que aqui vemos um raro caso na Torá de Oráculo contra Profecia: este provavelmente é o sentido da frase “…e Rebeca foi a consultar o Senhor…”, frase que confundiu os comentaristas medievais.
A segunda, e esta é fundamental para o entendimento do livro da Génesis, é que o futuro não é tão claro e causal como somos as vezes levados a pensar. A Avraham foram prometidos muitos filhos, mas ele teve que esperar muito tempo até o nascimento de Isaac. Aos patriarca foi prometida uma terra, mas não a adquirem durante as suas vidas. A vigem Judaica, inclusive tendo uma destinação, é comprida e tem muitos altos e baixos. Jacob servirá o será servido? Não sabemos…Só depois duma comprida e enigmática luta nocturna, Jacob recebe o nome de Israel, que quer dizer “aquele que luta contra os seres divinos e os humanos e ganha”.
A mensagem mais importante deste texto é ambos, literária e teológica: O futuro afecta a nossa percepção do passado, e nós somos parte duma história cujo último capitulo ainda não foi escrito: isto é de nossa competência como foi da competência de Jacob.

*O rabino Eliezer di Martino é o rabino-chefe de Trieste