BECHOL LASHON Português – Homem justo e perfeito

DI MARTINOpor Eliezer Di Martino

“…Era homem justo e perfeito em suas gerações, e andava com Deus.” (Génesis 6, 9)

NoaH é uma das mais interessantes figuras da Tora e isto é evidenciado logo no início da Paracha. Ninguém na Tora recebeu este tipo de elogio, nem Abraão, nem Isaac, nem Jacob, nem José, nem Moisés nem Josué. Todavia, a ultima cena da sua vida esté cheia de Pathos:

“E começou NoaH a cultivar a terra e plantou uma vinha.
Bebeu do vinho, e embriagou-se; e achava-se nu dentro da sua tenda.
E Ham, pai de Canan, viu a nudez de seu pai, e o contou a seus dois irmãos que estavam fora.
Então tomaram Shem e Yafet uma capa, e puseram-na sobre os seus ombros, e andando virados para trás, cobriram a nudez de seu pai, tendo os rostos virados, de maneira que não viram a nudez de seu pai.” (Génesis 9, 20-23)

A decência do comportamento de Shem e de Yafet não nos pode esconder que eles foram extremamente embaraçados pelo facto de saber que o próprio pai, o único ser humano pelo qual valia a pena de continuar a raça humana, tornou-se um bêbado. Como pode ser que um homem tão grande tenha caído tão em baixo? Esta é a pergunta a qual os sábios do Talmud ententaram responder. Há vários comentos mas um em particular é especialmente afiado:

Quando as águas baixaram, NoaH devia ter saído da arca. Porém, NoaH disse a si mesmo: “Eu entrei na arca com a ordem de D-us, conforme foi dito: “Entra na arca…” (Génesis 7, 1). Acaso agora posso sair sem a ordem de D-us?” O Santo Bendito Seja Ele, disse-lhe: “É a ordem, então, que tu estás a esperar? Bom, então, eis a ordem! Conforme foi dito: “Então disse D-us, sai da arca…” (Génesis 8, 15-16)
Rabi Iehuda Bar Ilai então disse: “Em lugar do NoaH, eu tinha quebrado a arca e tinha saído!” (Midrash TanHuma, NoaH 13-14)

Para perceber este Midrash nós temos que ler a história do Dilúvio atentamente, com particular atenção ao ritmo da narrativa. A história começa rápida. D-us anuncia a iminente destruição da vida terrestre. Ele ordena a NoaH de construir uma arca, especificando as medidas exactas. Os detalhas sobre o que é que devia levar com ele, sua família, os animais e alimento. Começa a chuva e a Terra é inundada; NoaH e quem com ele, são os únicos sobreviventes. A chuva para e as aguas diminuem.
O que é que esperaríamos ler a seguir?
Que NoaH sai da arca! Invés a narrativa torna-se mais lenta e durante 14 versículos quase nada acontece. As águas são completamente absorvidas e a arca fica bloqueada. NoaH abre uma janela e envia um corvo, depois manda uma pomba. Aguarda sete dias e envia outra vez a pomba a qual volta com um ramo de oliveira. Outros sete dias passam e envia outra vez a pomba a qual esta vez não volta mas NoaH ainda não sai da arca, até D-us dizer: “Saia da arca…”, Só então NoaH sai. O nosso Midrash é claríssimo na sua mensagem: quando lidamos com a reconstrução dum mundo destruído, não esperamos por ordens ou permissões.

O que é que NoaH diz a D-us quando é decretado que o mundo vai ser destruído? O que é que ele diz quando D-us ordena de construir uma arca para poder se salvar? O que é que diz quando a chuva começa a cair? Nada! Durante toda a sequência dos eventos, NoaH não diz rigorosamente nada. Invés, lemos quatro vezes: “Assim fez NoaH, segundo tudo o que D-us lhe mandou, assim o fez” (Ibid. 6, 22); “E NoaH fez segundo tudo o que o Senhor lhe ordenara” (Ibid. 7, 5); Ele trouxe os pares das várias raças de animais “…como D-us ordenara a NoaH” (Ibid. 7, 9); NoaH é o paradigma de obediência bíblica. Ele faz segundo o que é ordenado. Aquilo que a sua história nos diz é que a obediência não é suficiente.

Este é um fenómeno extraordinário. Seria razoável achar que numa vida religiosa, a obediência é a maior virtude. No judaísmo não é. Uma das mais esquisitas características do hebraico bíblico é que, inclusive se a Torá tem 613 Mandamentos, não tem uma palavra para dizer “obedecer”. Invés o verbo que a Torá usa é “Lishmoa”, que em hebraico quer dizer “ouvir, escutar, perceber, entender”. Em hebraico moderno, com o nascimento do exército de Israel, tiveram que inventar uma palavra para dizer “obedecer”. Escolheram “Letsaiet” que é uma palavra aramaica para dizer cega obediência.
No judaísmo D-us não pede cega obediência.
“D-us não lida com Suas criaturas de forma despótica” (Tratado Avoda Zara 3ª).
Se Ele tivesse querido submissão cega à Vontade Divina, tinha criado robots, maquinas ou tinha geneticamente programado os homens para que respondam automaticamente às ordens como os cães de Pavlov. D-us nos quer responsáveis, maduros, cumprindo a Sua vontade porque a percebemos ou porque confiamos Nele quando não percebemos. Ele quer algo mais grande da obediência, Ele quer responsabilidade.

Assim, os sábios entenderam que o herói da fé é o Abraão e não o NoaH:
Abrão que lutou uma guerra para libertar o seu sobrinho, que rezou para pessoas sabendo que a maioria deles eram malvados, Abraão que desafiou D-us duma forma que nunca se viu: “Não fará justiça o juiz de toda a terra?” (Ibid. 18, 25). O que tinha podido dizer um outro Abraão ao ser enfrentado pela possibilidade dum Dilúvio? “Se porventura houver cinquenta justos na cidade…Se porventura se acharem ali dez?… Longe de ti que faças tal coisa, que mates o justo com o ímpio, de modo que o justo seja como o ímpio…” (Ibid. 18) Abraão podia ter salvo o mundo. NoaH salvou apenas a si mesmo e a sua família. Abraão podia ter fracassado, mas NoaH, pelos vistos, nem sequer intentou! O fim de NoaH: bêbado e embaraçante para seus filhos: isto talvez nos diz que quando uma pessoa é salva sem ter intentado salvar o mundo, nem sequer a mesma pessoa é salva!

A diferença entre Abraão e NoaH é exposta por um Midrash de Rabi Iehuda:

“NoaH andava com D-us” Podemos entender o sentido desta passagem através duma parábola: Um Rei tinha dois filhos, um adulto e o outro mais jovem. Ao mais novo disse: “Anda comigo”. Mas ao mais velho disse: “Anda em minha presença”. Assim foi com Abraão: “…Anda em minha presença e sê perfeito.” (Ibid. 17, 1). Mas de NoaH a Tora diz: “…andava com D-us” (Bereshit Raba 30, 10)

É preciso ter coragem para reconstruir um mundo destruído. Então quando se trata de reconstruir as ruínas duma catástrofe, não esperamos para a permissão ou a ordem! Tomamos o risco e andamos em frente! A fé é mais de obediência, é a coragem de criar!

*O rabino Eliezer di Martino é o rabino-chefe de Trieste.